DIÁRIO DE UM ROMEIRO DE PRIMEIRA VIAGEM – APARECIDA/SP (2023)

28-09-2025 17:52

PREÂMBULO

 

Quando outubro desponta nesse pedaço do sul da terra, grupos de romeiros entram pelo acostamento da [rodovia Presidente] Dutra, [São Paulo]. Em questão de instantes, eles vão avistar outros romeiros, e a esses vãos e juntar outras centenas, que vão entrar na estrada por outra, outra e outra cidade. Em seguida, somando-se àquele que vem sozinho, e àquele outro que vem empurrando o companheiro na cadeira de rodas, serão milhares de brasileiros a caminho de Aparecida. Sim, desde 1928, a santinha tem sua própria cidade (ALVAREZ, 2014, p. 12).

 

É para o Santuário Nacional de Aparecida que peregrinam, todos os anos, milhões de brasileiros com milhões de objetivos particulares, que, se olhados com atenção, se resumem basicamente a dois: pedidos e agradecimentos à Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo, ali representada pela escultura oficialmente reconhecida pelo Vaticano como Nossa Senhora da Conceição Aparecida (Idem, p. 13).

 

Enquanto caminham, romeiros pensam na vida. ‘Meditação’, dizem alguns. É hora de pensar nos erros cometidos ao longo do ano espiritual que se encerra no dia da santa. Hora de pensar em novas atitudes, para se tornar uma pessoa melhor. Aproveitar a peregrinação para pagar promessas e pecados acumulados. ‘Vamos pagar e agradecer’ (Id., p. 15).

 

 

Esses trechos fazem parte do livro do jornalista Rodrigo Alvarez, intitulado: Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil, publicado em 2014. Nunca tive a intenção de ir até a cidade de Aparecida a pé, até me deparar com a biografia. Ao lê-la num momento específico da minha existência, decidi realizar a romaria a pé como uma forma de agradecimento pela vida e como uma experiência antropológica da fé humana e das suas diversas manifestações e significações. O passo seguinte seria encontrar um grupo de romeiros...

Ao saber desse desejo, o colega de trabalho, professor de Língua Portuguesa, Marcos Miller, relatou-me que o seu cabelereiro, Pedro, participava de uma romaria. Assim, entrei em contato com o Seu Pedro integrando a Romaria do Morro Doce. Na sua 12º edição, a romaria é organizada pelo Seu Severino (Nil), “caboclo” de meia idade, morador do Jardim Monte Belo, situado nos arredores do Morro Doce. O inusitado da história é que esse bairro da zona oeste da capital paulista esteve presente na minha vida nos primeiros anos de profissão docente, em 2009/2010. Agora, passados treze anos, cá estou novamente...

Uma advertência. As anotações contidas no diário foram feitas no ano de 2023, sempre no final de cada dia de caminhada. Por motivos de mudança, acabei perdendo-as. Agora encontrado, o registro está sendo publicado.

Portanto, convido você, leitor, a navegar comigo a bordo do meu segundo diário de viagem.

 

PRIMEIRO DIA: SEXTA-FEIRA, 06 DE OUTUBRO DE 2023

09:12h:

Chego no cruzamento entre a marginal do Rio Tietê e a ponte da Freguesia do Ó, com um misto de ânimo e ansiedade, sob um sol escaldante. Às seis horas da manhã um grupo de oitenta romeiros saiu do Morro Doce com destino ao Parque Novo Mundo, zona norte de São Paulo, local da primeira dormida. No percurso mais pessoas se juntariam à romaria, como é o meu caso. Encontro com o grupo por volta das 09:20h.

Caminhamos pelo acostamento da marginal no sentido contrário aos carros (uma prática da nossa romaria), conforme orientação das autoridades oficiais e dos coordenadores da romaria, até o local onde seria servido o almoço. Assim, às 13h paramos para descansar, almoçar e abastecer os nossos estoques de água num posto de gasolina próximo da ponte das Bandeiras. Aproveito o tempo para conhecer pessoas e saber mais sobre os motivos individuais para estarem ali realizando a caminhada. Em meio às histórias de superação e pedidos à santa, percebo que predomina o sentimento de gratidão à vida.

 

16h:

Chegamos ao local da primeira dormida, no Parque Novo Mundo. A distância total percorrida foi de 38km. Como sai da metade do caminho, percorri 20km.

Nos alojamos na borracharia do Silvano, onde pudemos montar as barracas de acampamento para descanso, tomar banho e nos alimentarmos. O momento também serviu para distrações entre os romeiros e muitas risadas.

 

21h:

Peguei o meu saco de dormir (o famoso edredom com zíper) e fui dormir, ansioso para a caminhada pela Dutra.

 

SEGUNDO DIA: SÁBADO, 07 DE OUTUBRO DE 2023

03:30h:

Acordamos com o Seu Severino entoando o seu mantra diário em alto e bom som: “Vamos acordar meu povo!”. O romeiro Daniel, o Piauí, que Deus o tenha (falecido em 2025), recita sons de animais para acordar a galera. Saudades.

Tomamos café e organizamos as coisas da caminhada. A romeira Dóris, que foi uma companheira de travessia, chegou a tempo de participar da reza coletiva do pai-nosso e da ave-maria.

 

05h:

Iniciamos a caminhada no 229km da rodovia Presidente Dutra, no sentido Rio de Janeiro/São Paulo, no sentido contrário dos carros. Surgiu uma ideia que acatei de início: “puxe um bom ritmo de caminhada até o meio-dia. Depois é só administrar”.

 

09h:

Chegamos na cidade de Guarulhos, no posto de gasolina “Sakamoto”, onde havia uma tenda grande de apoio aos romeiros. Pegamos frutas e água e continuamos caminhando.

Após algumas horas, o líder da romaria, Seu Severino, avisou no grupo do whatsapp que um senhor tinha sofrido um infarte fulminante no posto do Sakamoto, um pouco antes da chegada da esposa. Eu e a Dóris o vimos chegar ao posto passando mal, logo tendo o atendimento das pessoas que acionaram ajuda médica. Infelizmente, não deu tempo. Esse triste fato mexeu com os ânimos de todo mundo. Que Deus o tenha!

 

15h:

Após pararmos no Rancho da Pamonha e nos deliciarmos com as comidas e bebidas, eu, a Dóris, o Marcelo, o Mineiro, o Silvio e o Seu Pedro chegamos ao local da segunda dormida, no restaurante da Dona Ana, no 192km, na cidade de Arujá. Hoje foi puxado, cansativo (37km de caminhada sob o sol escaldante). Da nossa romaria, quatro pessoas passaram mal, solicitando ajuda dos carros de apoio. Agora é hora de descansar que amanhã é um novo dia.

 

TERCEIRO DIA: DOMINGO, 08 DE OUTUBRO DE 2023

05h:

Céu nublado, com ventos e garoa. A distância a ser percorrida é menor, cerca de 33km (192km até 159km).

No dia anterior, o ritmo de caminhada foi forte, provavelmente (eu me conheço!) motivado pela adrenalina de caminhar pela tradicional rodovia, realizando um desejo pessoal, o corpo ficou dolorido. Optei por um ritmo mais controlado, porém contínuo, contando “km por km”...

Apesar de ter poucos postos oficiais de apoio, especialmente após o trecho da cidade de Santa Isabel, conseguimos, eu, a Dóris e o Seu Pedro, apreciar a gastronomia de um grupo de motoqueiros (Motoclube Maluco Beleza), da cidade de Osasco/SP que, voluntariamente, realizavam um churrasco à beira da estrada como forma de alimentar os romeiros, além de frutas, refrigerantes, doces e salgados, regados de muita música boa. Como fiz promessa de não comer carne durante os dias da romaria, comi uns espetos de queijo coalho e peguei água – o que fiz em todos os pontos de apoio. Elogiamos a iniciativa e pegamos o contato do organizador para apoiá-lo nos outros anos, já que eles estavam num local onde não havia nenhum ponto oficial de apoio.

 

14:30h:

Chegamos em Jacareí, Pousada Dutra, local bem organizado. Agora é hora de descansar.

 

QUARTO DIA: SEGUNDA-FEIRA, 09 DE OUTUBRO DE 2023

05h:

Acordamos e fizemos o ritual diário da nossa romaria, rezando o pai-nosso e a ave-maria, juntamente com alguns recados dados pelo Seu Severino. A maioria dos romeiros iniciaram a caminhada por volta das 05:30h.

Como ventou e choveu bastante na noite anterior, causando transtornos a todos, mal consegui descansar. Assim, optei por caminhar sozinho após o café da manhã, já que estava irritado e de mau-humor. A Dóris optou por ficar também e tomar o café da manhã com calma. Mesmo sonolentos, nos causou espanto com um misto de risos ao ouvirmos de um romeiro que “mostarda” era bom para câimbras. Continuei comendo banana para evitar câimbras...

 

07h:

Iniciamos a caminhada sob um tímido sol. Nesse trecho da rodovia havia muitas obras, mas como estávamos sem pressa, não nos impactamos com os transtornos das inúmeras travessias com muito barro.

Oficialmente, existem os PAPs (Pontos de Apoio aos Peregrinos) que ficam em tendas montadas na estrada para auxiliar os romeiros. Contudo, eu e a Dóris descobrimos, na cidade de São José dos Campos, um PAB (Ponto de Apoio aos “Burguesinos”, nome criado por nós). O que é isso? É um empório gourmet na beira da estrada. Como havíamos passado um perrengue com a chuva da noite anterior e estávamos ainda sob efeitos da chuva e do barro da estrada, decidimos parar e nos deliciarmos com três coisas, basicamente: cafés especiais, ar-condicionado e banheiro digno. Isso não é pouca coisa quando se utiliza os banheiros dos restaurantes à beira da Dutra, tradicionalmente utilizados por caminhoneiros. Após essa digna e revigorante parada, continuamos a caminhada.

 

17:30h:

Chegada ao Restaurante do Índio (na entrada há uma estátua de um caboclo). O trecho de hoje, de Jacareí até Caçapava foi de 29km (Do 159km até 130km, sentido Rio/SP da rodovia Dutra, passando pelo “deserto de Jacareí”, uma grande reta da estrada na qual não há pontos de apoio...).

Como o percurso foi curto e o mau-humor saiu, consegui socializar mais e conhecer algumas histórias da romaria e dos romeiros, além do encontro com outras romarias. Uma das histórias que me emocionou muito foi a do Ricardo e da sua mãe, Ana Rosa. Na condição de cadeirante, o Ricardo é uma pessoa que transmite energia positiva nas suas falas, não nos deixando desistir. Ele e sua mãe são exemplos de luz e sabedoria. Lição de vida.

Outra história é da romeira Ivonete, que nos falou que o seu pai trabalhou na construção do Santuário Nacional de Aparecida. Por último, uma história triste, porém hilária. Ao ajudar a descarregar o caminhão de apoio com as malas e as barracas, o romeiro Silvan teve uma queda. Após o susto e como não foi nada de grave, além do corte na testa (salvo engano), não seguramos as risadas ao contar o fato às outras pessoas.

 

QUINTO DIA: TERÇA-FEIRA, 10 DE OUTUBRO DE 2023

06h:

Trecho de Caçapava até Pindamonhangaba (130km até 101km), com 29km de caminhada.

Penúltimo dia de caminhada. Apesar do cansaço, a ansiedade por estar perto do Santuário Nacional aumenta. Dormi melhor, o que melhorou o meu humor e diminuiu a irritabilidade.

Após o café, eu e a Dóris, iniciamos o trajeto. Importante registrar aqui que ela foi uma romeira valente e determinada, que não desistiu da caminhada, apesar das constantes bolhas nos pés. Como “desistir é para os fracos”, ela se mostrou resiliente, pois, nos momentos de adversidade, encontrou forças para continuar a caminhada até a “Cidinha” (forma particular e carinhosa de se referir à santa). Lição de vida.

Outra romeira que se juntou a nós, foi a Lindaura (corredora), que, mesmo cansada, lutou contra o sono para concluir a cota diária de caminhada. Lição de vida.

Nessa altura da rodovia Presidente Dutra, várias romarias se encontraram, vindas de diferentes lugares, o que aumentou a emoção de se estar vivendo uma experiência antropológica única.

Conversando com romeiros de outras romarias, percebo que há certas “loucuras” que são feitas. Por exemplo, caminhar mais de 70km por dia, inclusive à noite (algo que não é permitido pela nossa romaria), causando cansaços em romeiros que se tornam “zumbis”. Romarias que funcionam praticamente como empresas, estipulando metas a serem cumpridas e “punição” aos romeiros que não consigam atingi-las, como não dormir dentro dos baús dos caminhões de apoio. Outro dado envolve os preços cobrados por algumas romarias da zona sul de São Paulo, que fogem do propósito da fé. Absurdo!

 

16:30h:

Chegamos, eu, a Dóris e a Lindaura, ao posto de gasolina Amaral, acompanhados de perto pelo Seu Severino. Hora de descansar.

Como fomos os últimos a chegar, não pudemos participar da bagunça, no bom sentido, de fazer a macarronada do Seu Pedro. De fato, cozinhar na estrada, após o cansaço da caminhada, é para poucos.

Antes de dormir, conversei com as romeiras Maria José e Amanda. A Dona Maria José é uma figura presente em todas as romarias do Morro Doce. Descobri que dei aula para o filho dela nos anos em que trabalhei numa das escolas públicas do bairro (2009/2010). Com a Amanda a conversa foi muito boa. Educada e simpática, ela pontuou algo de extrema importância: as dificuldades que as mulheres sofrem na estrada, para higiene e descanso. De fato, homens se viram em qualquer canto e de qualquer modo. Por outro lado, as mulheres necessitam de uma infraestrutura melhor organizada nos postos de gasolina. Fica a dica.

 

SEXTO DIA: QUARTA-FEIRA, 11 DE OUTUBRO DE 2023

05h:

Último dia de caminhada. Apesar de dormirmos ao relento (Estendi o meu saco de dormir debaixo de um telhado improvisado, já que estava uma temperatura agradável durante a noite), conseguimos descansar e relaxarmos os corpos. A minha mente estava numa adrenalina alta, num misto de ansiedade e euforia para chegarmos até o destino final. Caminharíamos, neste último trecho (101km até 71km), 30km.

As bolhas nos pés da peregrina Dóris começaram a piorar, fazendo com que ela caminhasse com dificuldade. Ela não segurou a emoção de realizar o sonho da caminhada, pois as cantorias e rezas no percurso aumentaram. Com o apoio meu e de outras pessoas que se solidarizaram com a sua dor, ela conseguiu concluir todo o percurso da peregrinação.

No 75km, paramos num ponto de apoio que servia almoço para os peregrinos. Decidimos parar e ficar ali o tempo necessário de recomposição das energias. O Seu Severino também apareceu. Quando nos viu, veio saber como estávamos. Aproveitou e almoçou. Conversamos de uma forma informal, o que acabou sendo como uma espécie de entrevista que eu pretendia realizar com ele desde o começo da romaria. Ele contou a sua história com a santa, da época que caminhava sozinho pela Dutra e era acolhido pelas outras romarias, principalmente a de Barueri. Para ele, a romaria de Barueri é a “grande mãe”, a grande incentivadora dele ter criado a Romaria do Morro Doce. Atualmente, com a ajuda da sua esposa Rita (a Kau), na sua 12ª edição (2023), a romaria não cessa de crescer e incluir mais pessoas.

 

15:30h:

Enfim, chegamos no Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Impossível segurar a emoção. O Seu Severino pediu para que algumas pessoas dessem o seu testemunho. Um deles me impressionou fortemente. O romeiro Marcelo contou da promessa que fez e da superação que teve após a doença do seu filho. Após esse momento de emoção, como forma de finalizar a romaria, entramos em conjunto no santuário, passamos pela santa e agradecemos.

Não sou católico, mas senti a necessidade de caminhar de joelhos dentro do santuário, como forma de agradecer pela vida e de retribuir por ter dado tudo certo comigo nesses pesados dias de caminhada.

Agora é descansar.

 

SÉTIMO DIA: QUINTA-FEIRA, 12 DE OUTUBRO DE 2023

05h:

Não consegui dormir diante da adrenalina sentida, apesar do cansaço e dores no joelho. Fui andar para conhecer as basílicas (velha e nova) e observar as pessoas. Por volta das 02h da manhã, fui para dentro da basílica nova aguardar a primeira missa do dia, a famosa “missa aos romeiros”, iniciada às 05h.

 

11h:

Entro no ônibus de volta à São Paulo, emocionado e agradecendo pelas experiências vividas.

 

14h:

Desço na ponte da Freguesia do Ó, mesmo local que há sete dias atrás, iniciei a caminhada, cansado e realizado.

 

 

Termino esse relato pessoal com mais um trecho do livro de Rodrigo Alvarez, que representa muito do que vi e vivi durante a caminhada:

 

Assim são os outubros, e quase todos os finais de semana; assim tem sido nas últimas décadas e, com mudanças apenas da enormidade da fé, nos três últimos séculos. É provavelmente essa mistura de fé com paixão e identificação que nos permite entender Aparecida como o primeiro símbolo verdadeiramente nacional, a figura mais antiga de nossa história que representou a unidade do Brasil. Ainda que tenha demorado até que ela deixasse de ser um fenômeno local, e depois regional, para se tornar a santa de todos os brasileiros, pois até mesmo aqueles que não se sentem próximos a ela, por questões religiosas, sabem que ao ver aquela imagem triangular, com manto azul de veludo e seus bordados em ouro, com o rostinho escuro quase escondido embaixo da coroa desproporcionalmente grande e rica, estão vendo um pedaço do Brasil (ALVAREZ, 2014, p. 16).

 

 

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: a biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. São Paulo: Globo, 2014.

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