CONTO - O SER E O COTIDIANO DA VIDA
19-01-2015 23:28À Sarah.
O sol aparece, os pássaros se agitam e a cidade ilumina-se com a suave luminosidade e o frescor de uma manhã de primavera. Numa suíte de alto padrão, localizada na zona central da cidade, um Homem desperta de súbito, atormentado por pesadelos sobre o seu emprego. Ele espreguiça-se e sente o seu corpo doído de uma noite mal dormida, mas lembra-se que hoje é o primeiro dia do tão aguardado período de férias. Dá um pulo da cama, põe água para esquentar e toma seu banho, cantarolando canções em ritmos desconexos, como um aparelho no qual se coloca músicas para tocar aleatoriamente. Já na cozinha coa o café numa rapidez incomum, enquanto passa manteiga na fatia de pão integral. Terminado o desjejum, seleciona umas parcas roupas, utensílios de higiene e pega um livro que lhe emprestaram já havia um tempo. Olha-o, na sua densidade de páginas e pensa: Nessas férias eu termino de lê-lo! Pega as chaves e desce o elevador, enquanto pensa na melhor rota para chegar à praia.
Na estrada, com a brisa da serra batendo no seu rosto, se permite a pensamentos divagantes acerca da vida e das relações humanas, algo intrínseco ao seu ser, porém, pela rotina do dia a dia foi-se perdendo isso, tornando-se uma pessoa niilista e egoísta, olhando apenas para si mesma, não pensando no conjunto da sociedade. Algo comum nos tempos atuais. Chegando ao seu destino, arruma suas coisas na pousada que já havia reservado, pega o livro e vai para a praia aproveitar o entardecer, quando o astro solar está se pondo. Pede uma cerveja e, enquanto a aprecia, fixa o seu olhar no horizonte refletindo sobre a brevidade da vida, a fragilidade humana e a grandiosidade da natureza sobre os humanos. O mar está calmo, comum num entardecer de primavera. De repente, ele percebe um barco vindo em sua direção com uma pessoa a bordo. Força os olhos na intenção de enxergar melhor e, pensa, bebi demais! Quando volta a si o barco está mais perto, e cada vez vai ficando mais perto, até perceber que a pessoa, na verdade, é um velho pescador. Chega a essa conclusão examinando, brevemente, o que vê.
O velho pescador atraca o seu velho companheiro de jornada e puxa assunto com o Homem, perguntando-lhe sobre o livro que carrega e que já tinha lido algumas páginas. O Homem comenta rapidamente sobre o assunto do livro, das sensações que o desperta e sobre o tipo de pensamentos que suscita. Que tipo? Pergunta o velho. O Homem, achando que tinha encerrado a conversa com o breve comentário, ficou surpreso e, após alguns segundos pensando, exclamou: Tipo a vida! O pescador ouviu enrolando, minuciosamente, o seu cigarro de palha. Esse silêncio incomodou o Homem. O velho olha-o fixamente, pressionando os olhos e, na sua sabedoria, devolve: O que é a vida? O Homem, sem ter certeza dos seus pensamentos, afirma: A vida é a minha vida! O que é a sua vida, questiona o senhor. A minha vida é a vida, responde o Homem. Fumando o seu cigarro e olhando para o mar, o velho fica alguns minutos quieto, enquanto o Homem torna a ler o livro novamente. Depois de algum tempo o pescador, tirando o cigarro da boca e encarando o Homem, assevera: Vou-lhe contar uma história! O Homem, pensando que essa é a chance derradeira do velho deixá-lo quieto no seu mundinho, responde: Conte!
Num povoado pequeno vivia uma mulher que se questionava, cotidianamente, acerca das relações humanas e da hipocrisia moral com que as famílias tradicionais viviam e, como o padre, sabedor disso, utilizava das doações espirituosas dessas “senhoras cristãs” para ajudar os desfavorecidos do vilarejo. Essa mulher, filha de uma família tradicional, foi educada desde criança pelos melhores professores da região, viajava todo ano e, aos quinze anos, falava três idiomas. Justamente por causa disso, tinha dificuldades para se relacionar com os homens da sua cidade, chucros e ogros intelectualmente falando, como ela mesma afirmava corriqueiramente. Num determinado dia, durante as festividades de aniversário do povoado, ela conheceu um homem que havia acabado de chegar à cidade, para trabalhar na escola recém-inaugurada. Começam a conversar e, sem perceber, se apaixonam. Ele admirado pela capacidade intelectual da mulher e ela admirada pela capacidade prática dele em lidar com as situações da vida como um todo. Amaram-se loucamente, em todos os lugares e posições possíveis. Ela dizia que ele a possuía como ninguém antes tinha possuído. Ele afirmava que ela o satisfazia na cama como nenhuma outra mulher foi capaz de satisfazê-lo. Assim, se completavam em quase tudo, como poucos seres são capazes de se completarem. Tinham suas diferenças? Tinham, afirmou o velho pescador ao ver o Homem atônito sentado na beira da praia. Casaram-se, com juras de amor, tiveram filhos, netos e bisnetos. Envelheceram, da mesma forma que se conheceram, encantados, apaixonados e atraídos um pelo outro, nas diversas situações e aspectos da vida, na sua totalidade. Eram duas almas que se encontraram nesse planeta, sob capas corpóreas.
O velho pescador terminou a história ao mesmo tempo em que terminou o seu cigarro de palha. Viu o Homem atônito e reflexivo. O Homem, por outro lado, observava o velho sem piscar os olhos, atencioso na história que ele acabou de contar. Pensa, foi a melhor história que já ouvi na vida. E quando, volta a si, olha na direção do pescador e percebe que o mesmo não está mais lá. Pensa, foi um sonho? Um devaneio de bêbado carente? Esfrega os olhos na expectativa de enxergar melhor na noite e olha para o breu do mar. Não vê nada! Na volta para a pousada continua pensando na breve história que o velho pescador o contou. Abre o livro para ler antes de dormir e se espanta ao ler uma frase e, esbravejando, diz: A vida é isso! Na exclamação continha todo o entendimento acerca da sua própria vida e, também, do intenso dia que tinha vivido. Pausadamente, em voz alta, leu a frase novamente: “A vida não é mais que uma contínua sucessão de oportunidades de sobreviver”. Portanto, entende, excitado e com os olhos arregalados, que tinha sobrevivido a mais um dia. Fecha os olhos e adormece...
Uma mulher acorda suada e assustada. Que sonho louco foi esse?! Que história magnífica foi essa?! Pensou. Levantou e olhou o celular para ver as horas e percebe que está atrasada para o serviço e que o seu chefe lhe dará uma bronca. Ele anda muito estressado e necessitado de férias, pensou vagamente. Foi tomar banho ainda anestesiada pelo sonho que teve...
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